Em junho deste ano, um projeto de lei polêmico foi aprovado e sancionado em Brasília. O Marco Legal do Saneamento Básico divide opiniões e impacta diretamente na relação de contratos de municípios com empresas da área, inclusive em Santa Maria.
A Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) anunciou novas Parcerias Público-Privadas (PPPs), modelo que deve ser facilitado pelo marco, no final de agosto. Uma delas contempla a região de Santa Maria e outras 40 cidades, incluindo municípios da Serra e das Hortênsias, Planalto, Vale do Rio Pardo, da Região Metropolitana e do Litoral. Neste caso, o custo é de R$ 3,6 bilhões e deve beneficiar, quando concluído, cerca de 2,2 milhões de pessoas.
A maior divergência sobre o Marco Legal envolve justamente a facilitação de privatizações. A meta de universalização é o argumento de quem vê o projeto com bons olhos. Já os críticos defendem que privatizações podem encarecer contas e que a meta de universalização não assegura atendimento a regiões em que não se garante lucro para as empresas.
O professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Elvis Carissimi avalia que não há garantia de que as metas sejam cumpridas. Ele também questiona a viabilidade da universalização até 2033, ano que o marco prevê para atingir as metas.
- Em grupos de discussão do novo marco, há um consenso de que não há garantia que vamos chegar na universalização. A ideia é abrir mais o setor inclusive para empresas privadas, que estão interessada no lucro, como qualquer empresa precisa lucrar. A universalização envolve muita obra civil. Precisaríamos cobrir 50% do sistema de coleta de esgoto, é praticamente metade do Brasil. Temos que pensar que, daqui 13 anos, seria uma cobertura de algo que nunca foi feito em toda história do país - analisa.
No Bairro Presidente João Goulart, na região nordeste de Santa Maria, moradores enfrentam problemas com esgoto. Mais especificadamente na Rua Luis Castagna, José Francisco da Silva, 39 anos, mora em um terreno com quatro casas. Lá, moram 16 pessoas de sua família. Quando a chuva é volumosa, o escoamento da rua não dá conta, e água invade o pátio.
- Faz uns quatro anos que fizeram uma tubulação nova na rua, mas está tudo entupido já. Ficaram de vir para a manutenção, mas não vieram mais - lamenta.
Maria Neli da Silva, 57 anos, também mora no local há 12 anos. Segundo a moradora, as residências são regulares e tem encanamento. O maior problema é o escoamento.
- A água sobe no nível da casa. Tem vezes que quase entra, aí corre o risco de perder as coisas de casa - conta Maria.
data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Renan Mattos (Diário)
Maria e seu filho Antônio Marcos da Silva, 32 anos, no pátio ainda úmido um dia após a água acumulada ter escoado
Na sequência da Rua Luis Castagna, moradores da Travessa Amaral enfrentam outra situação. Além do problema de escoamento, há casas que não têm sequer encanamento. Uma moradora da travessa não quis dar entrevista, mas relatou à reportagem que, quando chove, a água acumulada em outros terrenos escoa para o seu. Ela ainda contou que a única forma de escoamento dessa água e do esgoto de casa é para uma "valeta" na rua. A moradora não soube informar quem foi o responsável pela abertura, que dá conta do escoamento do esgoto de mais de uma casa na travessa.
data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Renan Mattos (Diário)
Na Travessa Amaral, o chão de terra segue molhado após a água ter se acumulado. Além disso, o esgoto da casa não é tratado
Conforme a Corsan, o contrato de programa (o acordo entre a companhia e o município) já tem metas definidas, mas que devem ser revistas de acordo com o novo marco. Ainda segundo a companhia, mais de R$ 100 milhões em obras estão contratados atualmente na cidade. Deste valor, 90% é voltado para obras de esgoto.
No final de agosto, foi assinada a ordem de serviço para uma obra de ligação de esgoto no Bairro Camobi. Com essa obra, prevista para 2023, a porcentagem de santa-marienses com acesso a tratamento de esgoto vai dos atuais 64% para 85%. Essa e outras obras que visam expansão do tratamento de esgoto ocorrem por meio de contratos de programas. Como ainda há trâmites para que as PPPs possam sair do papel, não há nenhuma obra em execução neste modelo. Por meio da assessoria de comunicação da Corsan, a companhia confirmou que a meta de universalização do marco é válida também para moradias irregulares.
Entretanto, além de áreas periféricas de uma cidade, a cobertura pode ser necessária além de um município. O professor Elvis Carissimi defende que Santa Maria pode atingir um bom índice de coleta de esgoto, mas demonstra preocupação com cidades próximas que podem não ser lucrativas.
- Santa Maria até não seria um problema, porque é uma cidade que é lucrativa sob esse ponto de vista. Agora, pensando em subsídio cruzado, quando uma empresa que abarca Santa Maria, por exemplo, e incorpora cidades próximas, que do ponto de vista econômico dariam prejuízo, é uma coisa que fica dúbia se vai acontecer com o marco legal do saneamento. Pela lógica, as empresas querem lucro. Então, por que uma empresa pegaria cidades que dão prejuízo? De certa forma, Santa Maria tem que cobrir um pouco do saneamento ao redor, porque não podemos deixar cidades próximas com poluição. O recurso hídrico não tem limite geográfico, a poluição de uma cidade vizinha pode nos atingir - pondera Carissimi
OPINIÕES DIVIDIAS
Após a sanção do governo federal ao projeto, o ministro do Desenvolvimento Regional, Roberto Marinho, argumentou, sem dar detalhes, que a nova lei contribui para a revitalização de bacias hidrográficas, conservação do meio ambiente, redução de perda de água, além de gerar empregos.
- A lei vai padronizar regras e dar segurança jurídica, algo que investidores do mundo todo aguardavam. Precisamos de investimentos em torno de R$ 500 bilhões a R$ 700 bilhões em 10 anos e só chegaremos a esse montante se somarmos esforços públicos e privados - defende Marinho.
A relação com o meio ambiente também é tratada como prioridade pelo governo gaúcho. Segundo o secretário estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos, o marco caminha no sentido do equilíbrio, eficiência e para garantir cooperação entre empresas, governo e municípios.
O MARCO
- Sancionado em 15 de julho, o marco prevê meta de fornecimento de água potável para 99% da população e de coleta e tratamento de esgoto para 90%
- Universaliza os serviços de água e esgoto até 2033 como meta de contratos de saneamento, que deve ser inclusa até mesmo nos contratos já em vigor
- Torna obrigatória a abertura de licitação que possa envolver empresas públicas e privadas
- Contratos em vigor são mantidos até março de 2022 e podem ser prorrogados por 30 anos se as empresas comprovarem capacidade econômico-financeira.
Segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI), a universalização poderia reduzir em até R$ 1,45 bilhão os custos anuais com saúde. Também sobre economia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) projeta que a cada R$ 1 investido em saneamento, deverá ser gerada economia de R$ 4 com a prevenção de doenças causadas pela falta do serviço. Ainda em setembro, o Senado deve votar os vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao projeto.